A passagem de Fernão de Magalhães pelo Brasil

Em sua viagem de descobrimento da passagem sul entre os oceanos Atlântico e Pacífico, o navegador português Fernão de Magalhães, que viajava a serviço da Espanha, fez uma breve passagem pelo Brasil.

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O cronista que relatou a viagem, o italiano Antônio Pigafetta, traz alguns detalhes interessantes acerca da nossa terra. Esses relatos dos primeiros de navegações e descobrimentos no Brasil e na América como um todo interessam pois mostram a visão de curiosidade ou espanto que as coisas daqui causavam nos navegadores.

Em 1519 já se passavam 19 anos desde que Cabral e sua frota conheceram Porto Seguro e os habitantes locais. O interesse dos navegadores portugueses estava voltado principalmente para o oriente, para as Índias, o Japão, a China etc. A coroa portuguesa naquele ano ainda havia direcionado muitos esforços para o Brasil, tampouco à navegação pelo Ocidente.

Por esse motivo mesmo que Magalhães procurou patrocínio espanhol para sua viagem de descoberta. Se os portugueses não estavam assim tão interessados na exploração pelo ocidente, que fossem os espanhóis.

O cronista Pigafetta relatava que após passarem pela linha equatorial, rumaram para “à terra que se chama Verzino 1 […] uma continuação daquela onde se encontra o cabo de Santo Agostinho 2.” Nesta localidade abasteceram-se de alguns mantimentos, inclusive uma cana-de-açúcar “muito doce”.

Dias depois aportam numa baía a que chamam de Santa Luzia, que é justamente a Baía da Guanabara, o atual Rio de Janeiro. É nessa parada que Pigafetta se informa mais acerca do povo que vive nessa terra das coisas que aí existem.

Menciona o calor muito forte, o extenso tamanho dessa terra (que ele estima ser maior do que a França, Espanha e Itália juntas), que “pertence ao rei de Portugal”. E nos conta sobre o povo que vive em cabanas com centenas de pessoas juntas, homens, mulheres e crianças, todos, vivendo nus e dormindo em redes de algodão sobre fogos acesos no solo. E anota que por tantas pessoas viverem juntas nessas “casas”, há sempre muito barulho.

Menciona suas canoas, feitas de tronco escavado com pedra, uma vez que não conheciam ferro. E como essas canoas podem transportar até 40 homens, que movem as canoas com remos.

Já nessa altura se conhecem os hábitos canibais dos índios do Brasil, coisa que Pero Vaz de Caminha e os marinheiros de Cabral aparentemente não tomaram conhecimento nos poucos dias que estiverem no Brasil. Pigafetta diz que, segundo o piloto João Carvalho 3, esse hábito teria começado com uma vingança. Uma velha teria mordido um índio de outra aldeia com tanta força que lhe teria rasgado o ombro. Esse índio seria o assassino do filho dessa velha. O índio ferido retornou a sua aldeia e mostrou isso aos seus amigos e parentes. Eles pensaram que os seus inimigos tinham tentado comer o índio vivo. E para que se mostrassem superiores em ferocidade, passaram a comer os inimigos que capturassem em combate. E os outros passaram a fazer o mesmo.

Claro que o relato acima não pode ser tomado como uma prova definitiva, mas é interessante relato das motivações de vingança que levava os tupis da costa brasileira a matarem seus inimigos, despedaçá-los e defumá-los na brasa para serem comidos. Esse espantoso costume será alvo de muitos conflitos entre portugueses e povos indígenas no século XVI.

Assim como Caminha houvera feito 19 anos antes, Pigafetta observa e anota a aparência dos índios. Caminha dizia que eles eram pardos, e Pigafetta confirma dizendo que a “sua cor é mais um verde-oliva do que negro”. E descreve os pelos do corpo arrancados, o uso de plumas, os lábios furados, o rosto e o corpo pintado etc.

As trocas e conhecimentos de novos alimentos entre o Velho Mundo e o Novo Mundo é talvez uma dos mais importantes fenômenos do início da Era Moderna. Pigafetta é um dos primeiros e descrever a tapioca para os leitores na Europa:

Comem uma espécie de pão redondo e branco, que não nos agradou, feito com a medula, ou, melhor dizendo, com o alburno que se encontra entre a casca e o tronco de uma determinada árvore 4, que apresenta algumas semelhanças com o leite coalhado.

Também cita um acontecimento que talvez possamos considerar uma manifestação daquilo que o antropólogo Darcy Ribeiro viria a chamar de “cunhadismo” 5, e também da permissividade sexual reinante entre os brasileiros nativos, em contraste com os cristãos da Europa.

Por vezes, para tentarem obter um machado ou uma faca, prometiam-nos como escravas uma ou duas de suas filhas, mas jamais nos ofereceram suas mulheres, que, além disso, não teriam consentido em entregar-se a outros que não aos seus maridos, porque, apesar da libertinagem das solteiras, o seu pudor é tal quando se casam que não suportam que os seus maridos as abracem durante o dia.

[…]

O comandante-chefe e eu fomos um dia testemunhas de um acontecimento singular. As jovens vinham com frequência a bordo oferecer-se aos marinheiros a fim de obter algum presente. Um dia, uma das mais bonitas também subiu, sem dúvida com o mesmo objetivo, mas tendo visto um prego do tamanho de um dedo, e pensando que ninguém observava, apanhou-o e com grande rapidez colocou-o entre os dois lábios dos seus órgãos sexuais. Queria escondê-lo? Queria enfeitar-se? Não conseguimos perceber.

  1. como o Brasil era conhecido na Itália nos primeiros anos[]
  2. Cabo litorâneo em Pernambuco visitado pelo espanhol Vicente Yáñez Pinzón em janeiro de 1500, poucos meses antes de Cabral[]
  3. piloto de bancos que viveu no Brasil por quatro anos e agora estava na expedição de Magalhães[]
  4. Na verdade é uma raiz, mas cremos que ele não pôde perceber esse detalhe quando viu mandiocas, algo que nunca tinha visto[]
  5. O ato dos índios de oferecer uma filha a um branco para conseguir dele os benefícios materiais ou simbólicos de tê-lo em sua família[]

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