O Descobrimento do Brasil

Em 1500 Pero Vaz de Caminha foi designado para atuar como escrivão na feitoria de Calicute, porto no qual Vasco da Gama havia desembarcado em 1498 e iniciado as primeiras relações comerciais diretas entre portugueses e indianos. O relato mais detalhado que temos da viagem do descobrimento do Brasil é o relato de Caminha.

DESEMBARQUE DE PEDRO ÁLVARES CABRAL EM PORTO SEGURO, 1500

Aproximadamente um mês e meio após a frota de Cabral zarpar de Lisboa com destino à Calicute na Índia os tripulantes começam a avistar aves e vegetações aquáticas vindas do oeste, indicando que estavam perto de alguma terra.

Desembarcaram na boca de um rio, e fizeram contato pacificamente com o povo que ali habitava:

Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas (flechas). Vinham todos rijamente em direção ao batel (canoa). E Nicolau Coelho lhes fez sinal que abaixassem os arcos. E eles os abaixaram.

Neste primeiro contato, devido a já ser tarde e o mar quebrar com força na costa, não conseguiam se entender, relata Caminha. Obviamente que sem barulho do mar também não poderiam ir muito além nas comunicações, visto total desconhecimento dos idiomas uns dos outros. Apesar disso, o instinto de trocar presente nos seres humanos desde tempos imemoriais manifestou-se naquele momento:

Somente arremessou-lhes um barrete (gorro) vermelho e uma carapuça (touca) de linho que levava na cabeça, e um sombreiro (chapéu) preto. E um deles lhe arremessou um sombreiro de penas de ave (cocar), compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas, como de papagaio. E outro lhe deu um ramal (fio) grande de continhas brancas, miúdas…

No dia seguinte os navios rumaram um pouco mais para o norte, para encontrarem um lugar mais seguro para aportar, uma vez que durante a noite os barcos sofreram um pouco com uma tempestade de chuvas fortes. Caminha relata que durante essa curta navegação, dezenas de homens acompanhavam as naus andando pela costa.

Quando ancoraram novamente, um dos tripulantes foi sondar esse porto em uma canoa e encontrou com uma canoa indígena. Levou dois jovens consigo para a nau Capitânia, o navio do comandante Cabral, “onde foram recebidos com muito prazer e festa”.

A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. […] Ambos traziam o beiço de baixo furado e metido nele um osso verdadeiro, de comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador. […] Os cabelos deles são corredios (lisos). E andavam tosquiados (cabelos cortados).

A carta também relata que os jovens índios, ao avistarem objetos de ouro e prata apontavam para a terra, o que o autor interpreta que eles estariam dizendo que haveria ouro e prata por lá. Essa informação denota mais um desejo de entender isso do que uma informação confirmada, seja que de houvesse metais preciosos conhecidos pelos índios, ou mesmo que eles tenham sequer tentado dizer algo sobre isso.

É curioso e interessante notar como várias das coisas oferecidas pelos portugueses aos índios não lhes apeteceu ou sequer interessou, como frutas, pão, vinho e outras coisas. Quando lhes mostraram uma galinha, se assustaram e tiveram medo dela, mas depois acabar pondo duas mãos na ave. Mas tiveram muito interesse num rosário de contas brancas que lhes mostraram.

Após essas primeiras interações no navio, relata caminha que deitaram-se num tapete e dormiram, sem cobrir suas vergonhas, os quais o observador escrivão notou ainda que não circuncidados e que eram depiladas.

No dia seguinte, ao serem dispensados os dois jovens para retornar de onde vieram, deram-lhes alguns presentes de pouco valor, como roupas e chapéus, além de uns chocalhos e campainhas. Mandaram com eles o jovem condenado chamado Afonso Ribeiro para que fosse com eles observar como viviam entre os seus. Quando chegaram na praia, os índios vieram às centenas recebê-los com arcos e flechas em mãos, sendo que os próprios índios que pernoitaram no navio pediram que abaixassem as armas, e eles abaixaram.

Os portugueses procuravam encher seus barris com água para reabastecer o navio, e os índios começaram a ajudar, sem que lhes fosse pedido. Pegavam os barris, enchiam de água num rio de água limpa que dava ali perto, e traziam de volta para os portugueses, pedindo que lhes dessem alguma coisa em troca, e os portugueses lhes davam coisas como cascavéis e manilhas (guizos e tubos de metal, ou algo assim).

Muitos índios apareceram para ajudar e trocar coisas. Trocavam arcos e flecha e recebiam chapéus e gorros. O escrivão relata outras aparências de índios, alguns com batoques mais largos na boca, outros com 3 ossos a perfurando, outros com partes do corpo pintadas de cores escuras. É famosa a observação que faz das moças:

Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito preto e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonhavam.

[…]

E uma [outra] daquelas moças era toda tingida de baixo a cima, daquela tintura e certo era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha tão graciosa que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições envergonhara, por não terem as suas como ela.

No domingo de Páscoa, dia 26 de abril, celebrou-se a primeira missa em solo brasileiro, após erguerem uma cruz para marcar o local. Os índios assistiam àquilo com curiosidade ou interesse, sendo que num momento durante a celebração alguns deles passaram a tocar uma espécie de buzina, a dançar e a cantar.

A primeira missa celebrada no Brasil

É digna de menção a cena relatada por Caminha, quando estavam perto de um rio onde os portugueses colhiam palmitos para comer. Os índios estavam além do rio dançando sem segurarem-se pelas mãos. Um tal Diogo Dias foi se juntar a eles, um homem conhecido por ser “gracioso e de prazer” (engraçado e divertido), levando consigo um gaiteiro e foram tocar e dançar com eles. É dito que os índios gostaram muito, e dançavam de mãos dadas como à moda lusitana por condução de Diogo Dias, ao som da gaita-de-fole, todos eles rindo muito e se divertindo com isso.

Mais tarde o Capitão mandou o degredado Afonso Ribeiro seguir os índios até sua aldeia. Ele retornou dizendo que mandaram-no embora, como não o querendo por ali. Não sabemos se isso é verdade ou se o degredado inventou a história por não querer se afastar de seus compatriotas lusitanos. Mas ele voltou relatando que na aldeia avistou apenas umas “choupaninhas” feitas de ramas e folhas.

Na segunda-feira seguinte o capitão Cabral ordenou que dois degredados rumassem até a aldeia deles novamente e que passassem a noite por lá. E por lá disseram ter visto as casas maiores do índios, que de tão grandes tinham o mesmo tamanho da nau Capitânia, sendo uma dezena delas na aldeia. Nessas casas habitavam todos, sem divisão de espaço, dormindo todos em área comum em redes atadas, algo como quarenta pessoas por casa, com um fogos no chão, para aquecimento.

Nessa visita provaram um alimento que segundo o relato parecia muito com o inhame. Por certo se tratava da mandioca e esta pode ter sido a primeira vez que um português ou branco provou esse alimento tão importante na história do Brasil.

Na terça conta Caminha que estavam os portugueses colhendo lenha e lavando roupas, quando os índios chegaram para lhes fazer companhia, desse vez bem mais à vontade do que antes, ajudando a carregar lenha e até mesmo lutando índios com portugueses “com prazer”.

Por certo se trata de um engajamento numa abordagem amistosa e esportiva de luta. Nesse mesmo dia dois carpinteiros aproveitaram a derrubada da lenha para construir uma grande cruz, o que gerou muito interesse dos índios.

E creio que o faziam mais para verem a ferramenta de ferro com que a faziam do que para verem a cruz, porque eles não têm coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau entre duas talas, mui bem atadas e por tal maneira que andam fortes, porque lhas viram lá. Era já a conversação deles conosco tanta que quase nos estorvavam no que havíamos de fazer.

Noutra noite um dos tripulantes convidou dois índios jovens para se hospedarem no barco. Os dois teriam dormido numa cama de lençóis, e o relato diz que ele gostaram muito. No dia seguinte lhes serviram um prato de pata de porco cozida com arroz, e que os índios comeram muito bem. Possivelmente se trata da primeira vez que os habitantes nativos do Brasil provaram a carne de porco e o arroz, dois alimentos também muito importantes para a nossa história. Não lhes deram vinho pois o homem que os tinha trazido, Sancho de Tovar, disse que não poderiam beber bem o vinho. Mais tarde na praia ofereceram o vinho a outros índios, sendo que alguns gostaram da bebida, enquanto outros não.

Num momento posterior onde os portugueses fixaram uma cruz, decidiram todos eles se ajoelharem e beijarem a cruz para que os índios vissem o quanto eles a adoravam. Segundo o relato, os índios imitaram os portugueses, ajoelhando e beijando a cruz.

Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências. E, portanto, se os degredados que hão de aqui ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque certamente esta gente é boa e de bela simplicidade. E imprimir-se-á facilmente qualquer cunho que lhe quiserem dar, uma vez que Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens bons.

O relato cita como os nativos, apesar de não lavrarem a terra nem criarem animais, comendo apenas a mandioca e sementes e frutos da terra, tinham uma aparência e força física aparentemente superior aos portugueses, mesmo com todos o trigo e legume que estes comiam. Obviamente que o cronista aí não havia se dado conta que os índios tinham sim um trabalho ainda que pouco avançado de lavoura da terra, que era justamente para a produção da mandioca, em pequenos terrenos, nada comparável a agricultura no Velho Mundo, de qualquer forma.

Mais tarde quando foram assentar a cruz de madeira que haviam fabricado, o padre Henrique celebrou outra missa e desta vez o relato fala que certa de 50 ou 60 índios acompanharam, todos de joelho assim como estavam os portugueses, da mesma forma se levantaram e ergueram as mãos os índios quando os portugueses o fizeram. Alguns índios teriam ido embora quando o sol ficou mais quente, mas houve um índio mais velho de seus 60 anos que permaneceu até o fim e chamou os outros para acompanhar, apontando o dedo para a cruz e depois para o céu, como que entendendo algo do simbolismo religioso do ofício. Após a celebração o padre Henrique distribuiu a todos um fio com um crucifixo, pendurando em seus pescoços.

No decorrer dos dias que permaneceram naquelas terras de Porto Seguro, decidiram mandar voltar um dos navios da frota, a fim de levar a notícia para o rei acerca do descobrimento da nova terra. Uma vez que deveriam seguir viagem para as Índias, e portanto não poderiam ficar muitos dias por ali, julgaram que seria o correto que alguém noticiasse o rei o quanto antes.

E decidiram também por aqui deixarem dois degredados, para que aprendessem melhor a língua a auxiliassem os próximos portugueses que chegassem futuramente. Acabou que outros dois marinheiros fugiram e aparentemente decidiram ficar pelo Brasil, e deles não se sabe nada. Um deles é o acima mencionado Afonso Ribeiro, que viria a ser resgatado quase 2 anos depois e retornaria para Portugal levando informações acerca do que viu e viveu entre os índios brasileiros.

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